Maputo, Moçambique — A pobreza em estado puro, vidas precárias e famílias empurradas pelo sonho de ter casa própria. Muitas vezes, esses lares surgem em locais inimagináveis. “Ei, é terrível viver atrás do cemitério, é muito terrível. Praticamente da minha casa é o rio”, desabafa um morador. Para alguns, barracas improvisadas; para outros, o seu lar doce lar. Tudo isso movido por um único desejo: ter uma residência própria. “Eu quero sair, não tem dinheiro para comprar.”
Em Moçambique, onde a venda de terra é proibida pelo Estado, possuir um terreno é privilégio. “Tem que preparar pelo menos uns 150 a 180 mil meticais para ter acesso a um espaço e construir uma casa condigna”, explica um cidadão. O cenário torna-se ainda mais desafiador quando se considera que uma construção no valor de 2 milhões de meticais levaria cerca de dez anos para ser concluída, o que evidencia, segundo especialistas, a marginalização da habitação no país.
O sonho de ter casa própria não é simples: primeiro é necessário obter um terreno, depois financiar a construção. Muitos jovens fazem das tripas o coração para garantir um tecto, devido à escassez de investimentos públicos e políticas habitacionais ineficazes. “Eu vivia no 25 de Junho, que é choupal, e saí de lá para cá porque a casa não era minha. Então chegou um certo tempo, eles precisaram da casa e eu tive que procurar o meu espaço para construir a minha própria casa. Estou a ver aqui já há quatro anos”, conta um dos moradores.
Viver ao lado da morte
O espaço estreito entre as campas é o caminho de entrada e saída de Inácio Tembe, de 41 anos, que reside no bairro Musumululuco, atrás do cemitério Texlon, na Matola. Viver lado a lado com os mortos nunca foi um sonho, mas as condições de vida o empurraram para lá. “Fui para Bobole, fui para Marracuene, mas os preços não combinavam com o que eu tinha. Então, uma senhora me ofereceu um espaço à venda, e eu comprei. Comecei a morar aqui até hoje”, explica. Inácio é sapateiro, com renda diária entre 100 a 200 meticais.
Após anos de economia, conseguiu juntar 60 mil meticais, mas ainda assim não era suficiente para terrenos em outras áreas. “Em Bobole, um espaço custava 80 mil. Em Marracuene, havia opções a 75 mil, mas distantes. Aqui encontrei por 30 mil e usei o restante para construir um quarto”, relata. Hoje, entre o cemitério e o rio Matola, vivem cerca de 70 famílias, todas movidas pelo mesmo desafio: a falta de recursos para uma residência digna.
A convivência com os mortos tornou-se corriqueira. Crianças utilizam o cemitério como caminho para a escola, parque de diversões ou até pista de corridas improvisada. Assan Mussa, de 64 anos, vive sozinho desde 2001 e relata a precariedade das condições. “Comprou o espaço, como foi?” — “Não, arranjei da minha maneira. Ninguém me deu nada. Estou aqui desde 2001.” Apesar das dificuldades, a vida segue, e os moradores tentam melhorar suas habitações com materiais improvisados.
O espaço à venda na região custa 40 mil meticais, suficiente apenas para um quarto e uma mini sala. O acesso à água é precário, com fontes impróprias para consumo, obrigando os moradores a improvisar soluções, como covas que rapidamente desmoronam. A insatisfação é geral, mas a realidade obriga: “Sempre dizem que espaço não se vende, mas, quando você precisa, tem que pagar”, afirma um habitante.
Desafios financeiros e burocráticos
Segundo o geógrafo Roger Sacine, os problemas habitacionais do país dividem-se em dois grupos: acesso à habitação e condições das habitações. “Quando se obtém um lugar, muitas vezes são habitações precárias, localizadas em áreas inapropriadas”, esclarece.
A Constituição da República define que a terra é propriedade do Estado, devendo ser obtida mediante requerimento ao município ou governo distrital. Na prática, porém, o processo é moroso e burocrático, levando muitos a recorrer à compra informal de terrenos. “Um espaço aqui está a 120 mil meticais”, revela um intermediário. No Grande Maputo, terrenos com água e energia custam, em média, 150 mil meticais, sendo que valores menores geralmente correspondem a locais impróprios ou sem infraestrutura básica.
Jovens como Ailton Cuna, fotógrafo de 26 anos, enfrentam a dificuldade de conciliar renda limitada (12 mil meticais mensais) com o sonho de adquirir terreno próprio. Calcula-se que, poupando 3.600 meticais por mês, levaria cerca de 28 meses para juntar o valor necessário, sem considerar inflacção ou aumentos de preço. Além do custo, a falta de parcelamento urbano e desordenamento territorial complica ainda mais a situação.
O desafio da construção
Após garantir um terreno, surge o desafio da construção. Um jovem pode conseguir, com cerca de 250 mil meticais, construir uma casa básica de dois quartos, sala, cozinha e casa de banho, utilizando blocos e chapas de zinco. Para obras de maior porte, o valor chega a 2 milhões de meticais, inviável para a maioria dos jovens moçambicanos, cujos salários dificilmente ultrapassam 50 mil meticais. Segundo o bastonário da Ordem dos Engenheiros, o custo elevado deve-se à importação de 85% dos materiais de construção, como cimento e ferro. Subsidiar esses materiais poderia reduzir drasticamente o custo das habitações.
Políticas públicas e iniciativas privadas
Apesar de a habitação ser um direito constitucional, políticas públicas abrangentes ainda são escassas. Projectos privados, como o Renascer, entregaram 100 casas aos jovens em 2022, com prestações mensais de 2.570 meticais durante 20 anos. Porém, a baixa ocupação dessas unidades, algumas transformadas em cidades fantasmas, levanta questionamentos sobre os beneficiários reais e a eficácia das iniciativas.
Especialistas defendem a criação de uma instituição vocacionada exclusivamente para habitação, com coordenação de fundos, fornecedores e produtores de materiais de construção. Também sugerem a distribuição de terrenos infra-estruturados, como o projecto recente em Vilanculos, onde o Presidente entregou 12 talhões equipados com água, energia e infraestrutura básica, projectando futuras cidades para a juventude.
Outros projectos incluem casas do tipo dois ou três, financiadas pelo Fundo para o Fomento à Habitação, com prestações mensais de 15 a 22 mil meticais, pagáveis em até 25 anos. No entanto, a questão central permanece: considerando que o salário mínimo nacional ronda 9 mil meticais, para quais jovens essas casas são realmente acessíveis?
Enquanto políticas públicas consistentes não forem implementadas, a realidade permanecerá dura. Muitos cidadãos dependem exclusivamente de seus próprios esforços para conquistar uma habitação digna, vivendo em condições precárias, improvisadas e, muitas vezes, perigosas.
A reportagem é de Abdul Manhiça, Gaspar Xerinda, Elton; edição de Fernandes Varela e Julieta Zucula, STV Notícias.
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